“Kindred: Laços de Sangue” é uma obra que poderia facilmente ser catalogada como um romance histórico de ficção científica. Escrito por Octavia E. Butler, considerada como a grande dama da ficção científica, em 1979, a obra chegou ao Brasil ano passado pela Editora Morro Branco e foi escolhida para ser a leitura coletiva do grupo #PactoLiterário no mês de Maio.
“Comecei a escrever sobre poder, porque era algo que eu tinha muito pouco” Octavia E. Butler
Em seu vigésimo sexto aniversário, Dana e seu marido Kevin estão de mudança para um novo apartamento. Em meio a pilhas de livros e caixas abertas, ela começa a se sentir tonta e cai de joelhos, nauseada. Então, o mundo se despedaça. Dana repentinamente se encontra à beira de uma floresta, próxima a um rio. Uma criança, Rufus, está se afogando e ela corre para salvá-la. Mas, assim que arrasta o menino para fora da água, vê-se diante do cano de uma antiga espingarda. Em um piscar de olhos, ela está de volta ao seu novo apartamento, completamente encharcada. É a experiência mais aterrorizante de sua vida…até acontecer de novo. E de novo.
A trama se divide em dois períodos diferentes, o presente, que ocorre no ano de 1966 e o passado, no século XIX, numa Maryland pré Guerra Civil, um lugar perigoso para uma mulher negra.
Eu tomei cuidado. Conforme os dias se passavam, eu criei o hábito de tomar cuidado. Fiz o papel de escrava, prestava atenção a meus modos provavelmente mais do que precisava, pois não tinha certeza do que podia fazer sem ser punida. Pelo que percebi, não podia fazer muito.
Dana sempre teve o sonho de ser escritora e para atingir seu objetivo passou a trabalhar em um emprego temporário um tanto quanto degradante, porém foi lá que encontrou Kevin, um funcionário de uma empresa para a qual ela prestava serviço. Kevin era um homem branco, Dana uma mulher negra. Aos poucos, ambos descobriram que seus sonhos eram iguais, eles queriam ser escritores e foram os sonhos em comum que aproximaram os dois que acabaram se casando, mesmo com todo o preconceito e protestos velados da família de ambos.
Quando o primeiro incidente ocorre com Dana, eles não conseguem processar o que houve, porém, não tarda para que outro incidente aconteça e a personagem passa a ficar cada vez mais tempo presa no passado vivendo aquela época terrível, perigosa e degradante para negros. Esses incidentes não ocorrem aleatoriamente, eles possuem um padrão.
Essas viagens no tempo estão diretamente relacionadas à Rufus, o filho do fazendeiro Tom Weylin, sendo que toda vez que o garoto está correndo algum risco de morte, Dana é imediatamente sugada para o passado para salvar a vida do garoto, o que também não é uma coisa aleatória, uma vez que Rufus será o responsável pela paternidade de uma ancestral de Dana, portanto, salvar a vida do garoto, significa salvar sua própria vida também.
Eu era a pior guardiã possível que ele podia ter, uma negra para cuidar dele em uma sociedade que via os negros como sub-humanos, uma mulher para cuidar dele em uma sociedade que via as mulheres como eternas incapazes. Eu teria que fazer tudo o que pudesse para cuidar de mim mesma. Mas o ajudaria da melhor maneira que conseguisse. E tentaria manter a amizade dele, talvez plantar algumas ideias em sua mente que ajudassem a mim e às outras pessoas que seriam seus escravos nos anos vindouros.
Toda vez que viaja ao passado para salvar Rufus, Dana passa um período de tempo que pode ser pequeno ou grande no século XIX, o seu regresso para o seu tempo é determinado por uma ação, caso sua vida esteja extremamente ameaçada, ela é lançada de volta ao ano de 1966 e quando chega ao seu ano natural, descobre que não importa o período de tempo que tenha vivido no século XIX, pois em 1966 só teriam passado algumas horas ou dias.
As viagens ao passado tornam-se cada vez mais frequentes uma vez que Rufus não consegue evitar se meter em problemas e apesar de ter a plena consciência de que ao salvar o garoto, Dana também está de certa forma salvando sua própria vida, viver no século XIX se mostra uma tarefa bem mais difícil do que ela imaginou, o período no qual afro-descendentes viveram servindo aos brancos é de longe pior do que qualquer livro de história conseguiu retratar e a mulher livre, independente, educada e empoderada se vê obrigada a rebaixar e deixar de lado todos os seus direitos, tornando-se apenas mais um dos instrumentos de Tom Weylin.
– Ela queria móveis novo, prato de porcelana novo, coisas bonita que dá pra vê aqui agora. O que ela tinha antes tava bom pra Senhorita Hannah, e a Senhorita Hannah era uma dama de verdade. De qualidade. Mas as coisa não era boa pra esse lixo novo da Margaret. Então, ela fez o Senhô Tom vendê meus três menino pra conseguí dinheiro pra comprá coisas que ela nem precisava!
A presença de Dana na fazenda de Tom Weylin durante o século XIX é desafiadora, sua alma livre, sua educação e até mesmo sua postura diante daquele período contradizia tudo o que se conhecia a respeito da forma com a qual um negro deveria se portar e a personagem começa a sofrer com isso sendo atacada por todas as partes, desde Margaret Weylin que considera a postura e as atitudes de Dana atrevidas demais para uma negra (andar de cabeça erguida, uma negra? como assim?), até os próprios escravos que consideram Dana como uma negra que quer ser branca devido às suas atitudes que esbanjam a liberdade que somente os brancos possuíam.
Durante uma das viagens, Kevin estava abraçado com Dana e acabou sendo sugado para o século XIX também, o que tornou a situação dos dois ainda mais complicada, pois era inconcebível para a época a imagem de um homem branco casado com uma mulher negra, o que infelizmente continua sendo uma imagem inconcebível hoje em dia para pessoas com a mente limitada e o coração amargo, sendo assim, ambos tiveram que fingir serem Senhor e escrava para se protegerem da truculência da época.
– Você vai me dizer o que não podemos negociar? – Ele parecia mais surpreso do que indignado.
– Pode ter certeza de que vou. – Falei bem baixinho – Não negocio meu marido nem minha liberdade!
– Você não tem um, nem outro para negociar.
“Kindred: Laços de Sangue” é um livro extremamente bem escrito, com uma narrativa fluída e um argumento poderoso, a autora logo no inicio do livro diz que decidiu escrever sobre poder por ser algo que ela tinha pouco, porém aqui, ela demonstra o quão poderosa era. A obra é instigante, pois é interessante descobrir um pouco mais sobre aquele período histórico tão terrível, a experiência de ler a obra é uma mistura de melancolia, tristeza, dor e uma pitada de felicidade e esperança, é muito triste e doloroso ler sobre como os negros eram humilhados, torturados, vendidos e subjugados por uma maioria que detinha um poder que foi, é e continuará sendo completamente ilusório e sem sentido algum, pois antes da nossa cor, nossa religião, nossas escolhas, nossa sexualidade ou qualquer característica que nos define, somos todos pessoas, seres humanos e nenhum ser humano deveria ser rebaixado ao status de qualquer coisa inferior ao que ele é.
É óbvio que toda crueldade do período não existe mais tão amplamente da forma que existiu, mas sabemos que ainda hoje o trabalho escravo existe sim, a subjugação do negro pelo branco existe sim, mesmo que de forma velada, o preconceito não deixou de existir com o passar dos anos, o que é uma constatação triste e faz dessa obra uma leitura tão rica e importante. É de se admirar que tal obra só tenha sido publicada ano passado no mercado brasileiro, levando em conta a quantidade de livros sem propósito que surgem aos montes e são despejados religiosamente nas prateleiras das livrarias. Se hoje eu pudesse indicar uma leitura obrigatória para todos, seria sem dúvida “Kindred: Laços de Sangue”, pois além de ser um ótimo e essencial exercício de empatia, a obra nos faz entender, aprender ou reaprender o valor do ser humano independente de qualquer singularidade.
Quantos cafés “Kindred: Laços de Sangue” merece?
Já aceito um de presente
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Kkkkkkkkk pidão
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Concordo, essa leitura é obrigatória. Considero Kindred como um dos pilares da literatura para as pautas sociais. O conto da aia sobre feminismo e As fúrias do coração sobre lgbts.
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Tá me faltando o último pilar, procurei o As Fúrias Invisíveis do Coração no estande da Cia das Letras na Bienal e inacreditavelmente não tinha 😦
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