“O Escravo de Capela” é o terceiro livro publicado pelo cineasta e autor Marcos Debrito e meu segundo contato com as obras do autor, eu já havia lido e resenhado seu mais recente lançamento “A Casa dos Pesadelos” durante o especial #JulhoNacional. Lançada pela Faro Editorial ano passado, a obra é um terror nacional histórico com sua trama desenvolvida durante a época escravocrata do Brasil Colônia.
Durante a cruel época escravocrata do Brasil Colônia, nosso país foi um grande produtor e exportador de cana-de-açúcar, sendo o produto amplamente exportado para o continente europeu. É esse período, onde homens negros eram traficados e vendidos como escravos para trabalhar para os senhores de engenho, que o autor Marcos Debrito escolheu para recriar uma fábula do nosso folclore embasando-o em pesquisas acerca da época e dando uma nova roupagem mais adulta e verossímil à lenda. Antes de me ater à detalhes sobre a obra, preciso dizer que a pesquisa feita pelo autor para embasar seu texto é fantástica, o leitor realmente sente aquilo tudo à flor da pele e chega a ser cruel o quão a escrita do autor é imersiva nessa estória tão desprovida de escrúpulos.
Quando o relógio libertou os ouvidos de sua eufonia agoniante, o sibilo infausto que vinha em dois tons tomou o seu lugar para assombrar o imaginário com devaneios pesarosos de morte.
Inácio é um jovem médico que se formou fora do país, o fato de viver uma outra realidade lhe permitiu reconhecer o quanto a escravidão é cruel e desumana, o rapaz sempre detestou o ambiente da fazenda de sua família, os Cunha Vasconcelos, pois desde pequeno nutriu amor pelo ser humano independente de qualquer coisa. O jovem retorna ao Brasil para passar um tempo com o pai enquanto aguarda um contato sobre uma residência que fará em Londres e ao retornar se vê obrigado a encarar a realidade da escravidão na Fazenda Capela.
Antônio Batista é o patriarca da família Cunha Vasconcelos, e junto com seu filho mais velho, Antônio Segundo, administram a fazenda com punhos de ferro. Batista é responsável por decisões mais importantes e de cunho administrativo, enquanto seu filho Antônio administra os escravos de forma cruel, incutindo-lhes castigos desnecessários e tendo a fama de exagerar nas reprimendas, causando a morte de diversos escravos ou deixando-os em condições que lhes impossibilitam de seguir trabalhando.
Essa diferença ideológica e comportamental fazem do reencontro dos irmãos Vasconcelos, um acontecimento desagradável para ambos e complicado para Batista que precisa constantemente mediar os ânimos entre seus dois filhos.
São escravos, Inácio! Escravos! A vida deles perde a importância quando começam a não dar mais conta de fazer um serviço. Não gastei um punhado de réis para ficar criando negro como se fosse filho meu. Comprei negro para trabalhar na terra!
A visita de Inácio à Fazenda Capela acaba por despertar, além da animosidade entre os irmãos, a paixão do caçula por uma das mucamas, a jovem e bela Damiana. Como se não bastasse os desentendimentos familiares acerca do lugar do negro na sociedade, Inácio se vê em uma enrascada maior ao se apaixonar por uma negra e em uma enrascada ainda pior quando começa a coletar pistas acerca da origem misteriosa da escrava.
Enquanto Inácio faz descobertas que vão desestruturar ainda mais seu relacionamento com os membros de sua família, Antônio continua despejando sua fúria no lombo dos escravos da Fazenda Capela.
Sabola é a mais nova aquisição da família, vindo do Congo, o novo escravo não se conforma com sua situação e mostra desde o início que não é de sua essência se adaptar à uma realidade tão hostil e miserável. A inconformidade de Sabola gera a ira e Antônio, que logo de cara encontra um motivo para açoitá-lo na tentativa de fazer com que ele enxergue seu lugar dentro daquela realidade, porém, o escravo não se curva.
Ao ver o quão indomável é a esperança por liberdade que o rapaz têm consigo, Akili, um escravo que foi mutilado por Antônio ao ponto de não poder mais andar, decide ajudar o rapaz a fugir, porém, sua fuga é frustrada e Sabola acaba sendo assassinado por Antônio na frente de todos os escravos da forma mais fria e cruel possível para servir de exemplo.
A aparição macabra de um morto-vivo deformado em busca de desforra, na calada da noite, seria capaz de fazer com que o mais destemido dos homens buscasse proteção no colo materno. Mas era no corte de um terçado bem amolado que sua ameaça encontraria um sentido mais brutal.
O que os membros da família Cunha Vasconcelos não contavam era que Sabola iria retornar dos mortos sedento por vingança e com a promessa de que o reino construído com sangue na Fazenda Capela teria seu fim. Contar mais que isso estragaria completamente as surpresas da trama.
A escrita de Debrito é muito imersiva, o leitor consegue sentir a dor que os escravos da Fazenda Capela sentiam ao serem maltratados por Antônio, consegue sentir a claustrofobia da senzala, o calor e o trabalho extenuante do canavial e a impotência diante das diversas coisas que são tiradas daqueles homens, coisas como o próprio nome, a liberdade de ir e vir, a liberdade de poder conversar em seu idioma nativo e a liberdade de acreditar no que quiser e seguir a religião que mais lhe apetece.
É muito triste ler um livro tão bem embasado e escrito justamente por trata-se de um período que realmente existiu, período onde homens consideravam-se superiores à outros simplesmente por conta da cor de suas peles, superiores ao ponto de tratar outro ser humano como lixo e é ainda mais triste perceber que os anos se passaram e ainda há pessoas com esse tipo de pensamento, descreditando, humilhando e matando pessoas simplesmente por serem diferentes. Acontecimentos recentes corroboram o fato de que certos pensamentos e ideologias descabidas ainda existem e estão deixando de ser veladas na medida que ganham voz, rosto e representação em uma figura que compartilha de pensamentos retrógrados e infelizes em nome de “tradição e conservadorismo”, palavras veladas pelas suas reais intenções.
Livres da extenuação física, durante a missa eram aprisionados furtivamente para seguir uma religião opressora, prostrados a adorar um Deus ambíguo, pintado como misericordioso, mas vingativo quando negada Sua idolatria.
Como se não fosse suficiente espantosa a realidade vivida pelos escravos naquela época, o ressurgimento de Sabola dos mortos também causa espanto tornando a obra assustadora em diversos sentidos.
“O Escravo de Capela” é um trabalho nacional que deveria ser lido por mais pessoas, o trabalho de pesquisa que o autor fez e o que ele construiu à partir disso é de cair o queixo, eu fico imensamente feliz de constatar o quanto a nossa literatura é rica em obras de qualidade. A leitura da obra é uma experiência de imersão em uma das épocas mais podres da nossa história e para isso, Debrito não poupou em colocar em seus personagens traços dos mais odiáveis, Antônio e Batista são a representação de tudo que há de mais podre no homem e suas atitudes são imensamente enojáveis. Com uma escrita poderosa, uma obra muito bem contextualizada e cenas viscerais, Debrito conquistou ainda mais o meu coração de leitor e com toda a certeza entrou para a minha lista de autores que eu leria até suas listas de compras do mês.
Caso você tenha gostado das minhas impressões, você pode adquirir esse livro maravilhoso do Debrito pelo link do blog na Amazon.
Quantos cafés “O Escravo de Capela” merece?
6 comentários sobre “MÊS DO HORROR: O ESCRAVO DE CAPELA – MARCOS DEBRITO”