“Os Testamentos” é a inesperada, porém bem-vinda, sequência do incrível “O Conto da Aia” da autora Margaret Atwood. Trinta e quatro anos após a publicação da obra que a tornaria reconhecida mundialmente, a autora lança uma continuação que, à princípio deixou os leitores um tanto quanto desconfiados, mas cala a boca de qualquer leitor que decida mais uma vez mergulhar no universo “distópico” criado por Atwood.
Quinze anos após os eventos de “O Conto da Aia”, a ditadura teocrática de Gilead continua de pé. Diferente da abordagem por um ponto de vista único oferecido no primeiro livro, a autora opta aqui em nos apresentar mais facetas de Gilead através das visões de três mulheres totalmente diferentes. Essa oportunidade de ter uma visão completa do sistema hierárquico dessa sociedade Teocrática começa com uma personagem já conhecida, a controversa Tia Lydia.
Se você chegou a ler o primeiro livro ou acompanhar a série, sabe que as funções desempenhadas pelas Tias são repugnantes. As mulheres que possuem esse “cargo” dentro dessa sociedade são responsáveis por todos os assuntos relacionados às mulheres, pois os machos fundadores de Gilead entendem que não possuem tempo para dispensar à assuntos pouco importantes. Essas mulheres definiram regras, canções, mantras e orações dessa sociedade, são elas que moldam, castigam e destinam as Aias para os Comandantes, são ela também detentoras de duas das coisas mais importantes em Gilead, os registros genealógicos e os segredos.
Tia Lydia é a maior dessas figuras, extremamente temida pelas Aias, reverenciadas pelas filhas de Gilead, tratadas com temerosidade velada pelas Esposas e como braço direito pelos Comandantes e Regentes de Gilead. Em “Os Testamentos”, Margaret Atwood revela o passado de uma de suas personagens mais intrigantes, e o background oferecido pela autora é infinitamente melhor do que aquele revelado na série de TV.
O passado de Tia Lydia e a forma com que ela enfrentou o surgimento de Gilead e se moldou para sobreviver e ter consigo o máximo de poder que é permitido para as mulheres nessa sociedade é muito bem construído e, em nenhum momento, fica aquém de qualquer expectativa ou de tudo que já foi nos mostrado da personagem até então. É com essa personagem que a autora deixa claro que independente da função que uma mulher desempenha nessa sociedade, ela nunca será sequer comparada ao poder que os homens exercem sobre todas elas.
Agnes nos proporciona uma visão de dentro, ela é uma filha de uma Esposa e Comandante de grande importância na sociedade de Gilead. Como ela já nasceu dentro de Gilead, aquela realidade é tida como o normal para ela e o lado de fora visto com insegurança, medo e repulsa. Mas o fato de ter nascido ali e estar completamente habituada com os ritos da sociedade não lhe prepararam para certos acontecimentos que envolvem a mesma sede de uma pequena fatia de poder, que acometeu Tia Lydia durante a fundação do regime, e não tarde para que Agnes sinta uma das sensações mais intrínsecas às mulheres de Gilead, a insegurança.
O terceiro ponto de vista é de Daisy, uma visão externa de uma jovem que vive com seus pais no Canadá. Todo o conhecimento que a jovem possui sobre Gilead é o que aprendeu na escola, assistindo notícias ou ouvindo escondida as conversas de seus pais, ou seja, seu conhecimento sobre aquela sociedade é raso, porém, um incidente terrível acaba transformando sua vida e ela se vê obrigada a conhecer Gilead de uma forma mais profunda e desempenhar um papel importante na queda do regime.
Essas três mulheres, com muito pouco em comum, são os três pilares que sustentam essa história e ao mesmo tempo, as três rachaduras que podem conferir danos estruturais irreversíveis à Gilead. Além delas, a autora nos apresenta um novo elemento muito interessante e podre dessa sociedade, as Pérolas, mulheres enviadas para o exterior para recrutar novas jovens para Gilead, que servirão aos propósitos do regime de acordo com testes conduzidos pelas Tias.
“Os Testamentos” é uma obra tão boa quanto “O Conto da Aia” e explica muitas das questões que deixaram o leitor intrigado no primeiro volume, principalmente sobre as mulheres que de certa forma colaboraram para a criação de um regime que trata mulheres de forma extremamente objetificada. Na figura de Tia Lydia conseguimos entender que qualquer pequena fatia de poder concedida a essas mulheres é agarrada e devorada com afinco e voracidade para atenuar a dor da condição desumana de subserviência forçada e vigiada.
Atwood usa suas palavras para deixar claro o quanto a escrita, a leitura, o desenvolvimento de pensamento crítico e a documentação histórica são extremamente importantes, pois esses são os elementos primeiramente abolidos, difamados, manipulados e subvertidos por qualquer regime anti-democrático, eu creio que não precise citar exemplos disso por aqui né?
Quantos cafés “Os Testamentos” merece?
Incrível como esse livro consegue ampliar ainda mais o poder que a obra anterior alcançou. Resenha a altura do livro 👏🏼👏🏼👏🏼
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