“Enquanto os dentes” é o primeiro romance do autor carioca Carlos Eduardo Pereira, lançado em 2017 pela editora Todavia com capa de Flávia Castanheira.
Desde que vi pela primeira vez o título desse livro fiquei intrigado pela história, quem me acompanha sabe que uma das coisas que mais me chama atenção nos livros são seus títulos e foi assim que descobri “enquanto os dentes”. É engraçado que essa minha esquisitice em selecionar livros pelo impacto que esses títulos provocam em mim tem dado muito certo, foi assim que descobri autores como Alex Sens, Ana Paula Maia, Laura Elizia Haubert e agora Carlos Eduardo Pereira.
Na trama, acompanhamos Antônio, um homem negro de classe média que, após um acidente automotivo, se vê preso em uma cadeira de rodas. Filho de uma mãe religiosa e de um pai severo, intolerante e moldado pela carreira militar, ele precisou sair de casa para viver e se redescobrir fora do ambiente que lhe sufocava, mas agora diante de inúmeras dificuldades, ele precisa voltar.
“Enquanto os dentes da boca deram conta, ele mordeu, sustentou a vida que havia construído tijolo a tijolo, só que agora não dá mais. Agora ele sabe que acabou.”
Em uma manhã chuvosa no Rio de Janeiro, Antônio circula pela cidade enquanto um caminhão carrega sua pequena mudança. A mudança é em direção à casa da sua infância, a casa de seus pais, pessoas que ele não mantêm contato há mais de vinte anos.
Enquanto Antônio circula pela cidade com o intuito de alcançar a barca para a sua cidade natal, vamos sentindo as dificuldades que o cadeirante enfrenta em seu percurso pela cidade, dificuldades que tangem não só aspectos físicos das calçadas esburacadas ou sem rebaixamento que possibilite travessias, mas também as dificuldades do percurso pelos caminhos que o levaram até ali, a memória se prova ser uma estrada igualmente difícil de trilhar.
Narrado em terceira pessoa, o livro nos aproxima muito do personagem, o que propicia uma carga empática que funciona muito bem aqui. A obra composta de pouco mais de 90 páginas é construída sem divisão de capítulos, tudo acontece em um intervalo de algumas horas e tudo que descobrimos acerca do passado do personagem é entregue em forma de flashbacks, tudo isso conduzido por fluxo de pensamentos e consciência.
Enquanto mastiga algumas fatias de limão em seu trajeto de barca até a casa de seus pais, descobrimos os motivos pelos quais Antônio precisou regressar. Endividado, sem muitas perspectivas após o acidente e constantemente abandonado por pessoas com as quais ele contava, não lhe restaram muitas alternativas.
Quando jovem, Antônio sentia-se muito pressionado com o peso de seguir os passos de seu pai, o Comandante. Seguir carreira na Marinha e tornar-se uma versão atualizada de seu pai extremamente severo, machista e sexista nunca foi uma das grandes aspirações para a vida do jovem, ser homossexual complica ainda mais a sua relação com o pai e a possibilidade de tornar-se alguém como ele.
Sem escolhas, Antônio ingressa na Marinha e acompanhamos diversas situações difíceis que ele passou nesse período, até que teve a oportunidade de sair de lá e dar adeus ao molde onde queriam encaixá-lo. Foi assim que ele saiu de casa, se manteve distante da família por duas décadas e foi se descobrir longe disso tudo.
Mas a vida não foi leve para Antônio, sua trajetória é cercada de violência, desde o abuso psicológico sofrido em casa, passando pelo preconceito racial e a intolerância sexual e mais recentemente o aumento da carga de invisibilidade social reforçada pela cadeira de rodas. O autor consegue fazer com que o leitor se coloque no lugar do personagem e experiencie um pouco dessa sensação de invisibilidade social, de anulação do ser.
Em um dos vários momentos duros do livro, o personagem se vê preso em uma chuva torrencial tendo seu transporte negado por conta do espaço que sua cadeira ocuparia, ou sentindo-se inferiorizado quando consegue um transporte e é içado com pressa para não retardar a viagem dos outros passageiros, ou ainda quando precisa vagar procurando um rebaixamento para conseguir simplesmente atravessar uma rua, dentre muitos outros exemplos.
A experiência de estar na pele de Antônio torna-se mais difícil conforme a história avança e somos apresentados à detalhes das consequências que o acidente teve para a sua vida e as perspectivas ingratas que ele vislumbra para o seu futuro.
“enquanto os dentes” não é uma obra cheia de plots, com muitos acontecimentos ou reviravoltas, a premissa da história é simples, poucas coisas acontecem, mas isso de forma alguma significa que a história é vazia, pelo contrário. Eu li uma vez em algum livro do autor Stephen King que o difícil é alcançar o simples e essa obra de Carlos Eduardo Pereira prova esse ponto com excelência, um livro curto, com uma trama simples onde não ocorrem muitas coisas, mas que é dotado de um poder empático e reflexivo ímpar.
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Quantos cafés “enquanto os dentes” merece?
Gente que riqueza de história. Fiquei muito interessado.
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