“Tempo Estranho” (2018) é uma coletânea composta por quatro novelas escritas pelo autor estadunidense Joe Hill, famoso por obras como “Amaldiçoado”, “Nosferatu” e “Mestre das Chamas”. A obra foi lançada no Brasil pela editora Harper Collins no ano passado com tradução de André Gordirro.
O terror pode estar presente em qualquer lugar. Ele pode se esconder em uma foto que guarda uma lembrança querida, em uma única pessoa em um shopping lotado, nas nuvens e seus diversos e estranhos formatos e até mesmo em algo tão pequeno e insignificante quanto uma agulha. Eu já disse aqui algumas vezes, mas esse é o tipo de coisa que eu mais gosto no gênero.
Cantos escuros existem e podem mesmo ser perigosos, mas o perigo não reside apenas neles, o maligno está presente em nossas vidas em diversos lugares, formatos e escolhas.
Quando uma história do gênero envereda pelo caminho de transformar algo extremamente comum em uma coisa que pode ceifar a sua vida de uma hora para outra, o terror se instaura com verdade. É se utilizando de lugares, situações cotidianas, objetos e escolhas comuns que Hill escolhe mostrar aos seus leitores que não adianta se manter afastado de cantos escuros quando o mal te deseja, pois ele vai encontrar um caminho de qualquer forma e o tempo vai fechar.
Em “Instantâneo”, Michael em sua fase adulta narra acontecimentos estranhos que ocorreram em sua vida aos 15 anos de idade durante a década de 80. Michael era um jovem gordo apaixonado por desmontar aparelhos eletrônicos para entender como eles funcionam. Shelly, sua antiga babá, aparece durante uma dessas suas investigações bem desnorteada como se estivesse atrasada para o dia de trabalho. Comovido pela desorientação da mulher que cuidou dele uma boa parte da vida, o adolescente decide acompanhá-la até sua casa.
No caminho, Shelly diz diversas vezes que Michael precisa ter cuidado com o homem da Polaroid, ele encara esses avisos como mais um sinal de que a senhora não está batendo mais bem das ideias. Ao chegar na casa de Shelly e receber a gratidão aliviada de seu marido e a proposta de que Michael comece a cuidar da senhora em troca de dinheiro, o garoto decide andar pela cidade e acaba trombando com o homem da Polaroid.
Mediante a um acontecimento estranho, Michael percebe que sua antiga cuidadora tinha razão, o homem da Polaroid é realmente perigoso e quando ele tira uma foto sua, leva consigo uma parte da sua memória, então ele te clica uma, duas, três vezes, até não restar mais lembranças. Com uma tempestade se formando e com o marido de Shelly fora de casa, Michael precisa superar seus medos para se proteger e proteger Shelly do homem da Polaroid que além de estar focado em tirar o máximo de fotos possíveis de Shelly, prometeu para Michael que ele será o próximo.
Eu gostei bastante da ideia em torno dessa história, para falar a verdade “Tempo Estranho” é uma coletânea repleta de boas ideias. O problema é que o autor se alonga demais nessa primeira história, entregando um clímax na metade da novela, fazendo com que o interesse pelo resto se dissolva na medida que acompanhamos os acontecimentos posteriores ao confronto de Michael com o homem da Polaroid. Ainda assim, “Instantâneo” é uma ótima história que traz frescor à crença antiga de que fotografias poderiam aprisionar almas, substituindo a prisão pela perda e a alma pela memória.
Se o risco de “Instantâneo” é ter algo tirado de você por um objeto, em “Carregado” o risco é contrário, a sua vida continua em perigo, mas dessa vez pode ser ceifada por uma bala desligando funções vitais. A trama se passa em épocas diferentes, a atual e o passado que serve para desenvolver e dar background para os personagens.
Aisha era uma jovem negra no início dos anos 90 que viu seu irmão de criação ser assassinado pela polícia de forma cruel e covarde devido à confusão dos policiais racismo ao diferenciar uma arma branca de um simples cd. Anos depois, Aisha tornou-se repórter e possui um gosto especial por expor policiais que abusam do poder.
Roger é um homem casado com uma mulher rica e dona de uma rede de joalherias, ele mantem um relacionamento extraconjugal com Becky, uma das funcionárias da joalheria, há vários anos, relação essa regada à luxúria e um bizarro fetiche por armas.
Kellaway é um segurança de shopping center, que já teve uma carreira no exército, de onde foi expulso. O segurança recentemente foi impedido pela justiça de chegar perto do filho e da esposa, após uma denúncia de violência doméstica e ameaça à vida do próprio filho, além disso, Kellaway foi proibido de portar armas e teve todo o seu arsenal confiscado pela polícia.
O caminho desses personagens se cruzam em um shopping center, onde Becky decide se vingar de Roger após ter sua bunda chutada quando a esposa do amante descobre a traição. Armada, Becky entra na joalheria para mostrar quem coloca o ponto final na história, Kellaway recém munido de uma arma de fogo adquirida ilegalmente intervém na briga, comete vários erros movidos pelo preconceito e falta de caráter e consegue encobri-los, tornando-se uma espécie de herói. Caberá a Aisha o papel de mostrar para todos a verdadeira face de Kellaway, mas não será uma tarefa tão fácil.
Essa poderia ter sido a melhor novela da antologia, mas com poucas frases na finalização da história, Joe Hill consegue esvaziar toda a crítica e discussão sobre o armamento que vinha construindo até então. Eu considero este um final de extremo mau gosto, se essa novela estivesse em uma vitrine de bolos seria vendido com o nome de “a big slice of nothing”.
Seguindo o baile, temos “Nas Alturas”, uma novela onde o autor decide explorar mais o sobrenatural, acrescentando até mesmo alguns elementos cósmicos tímidos para falar sobre a linha tênue entre o amor romântico e o amor próprio.
Albrey é um jovem inseguro e medroso que está dentro de um avião prestes a fazer um salto de paraquedas com seus outros amigos em homenagem à uma amiga que faleceu recentemente, ele está literalmente se cagando de medo de fazer o salto e cogitando a ideia de desistir, mesmo que isso o faça passar vergonha na frente da moça pela qual nutre uma paixão platônica.
Quando uma pane acontece e desliga as turbinas do avião, Albrey se vê carregado para fora pelo seu instrutor que acaba voando pelos céus, enquanto Albrey simplesmente cai em cima de uma nuvem sólida. Agora, o jovem medroso e apaixonado vai precisar descobrir sozinho como escapar de cima de uma nuvem, como sobreviver sem água, sem comida e com suas memórias e sentimentos sendo aproveitados por essa nuvem estranha que quer mantê-lo ali consigo.
Eu particularmente achei um dos contos mais criativos da antologia, a ideia é bem original e as alegorias que o autor criou para falar sobre amor próprio e relacionamentos platônicos e até mesmo relacionamentos tóxicos e codependência funcionaram muito bem, ao final da leitura senti que faltou alguma coisa, mas foi uma das histórias que eu mais gostei.
Finalizando a antologia com “Chuva”, Hill está longe de trazer vida aos campos, a chuva que cai do céu são cristais pontiagudos que estraçalham o corpo de todas as pessoas que estavam tentando se refrescar do lado de fora em um dia de calor extremo.
Após ver sua namorada e sogra serem vítimas dessa chuva misteriosa e fatal, a jovem Honeysuckle decide viajar a pé para a casa de seu sogro, para comunicá-lo da tragédia que acometeu sua família. No caminho, Honey terá de lidar com um mundo mudado, onde as travas sociais também foram dilaceradas e as pessoas sentem uma liberdade maior de exercer aquilo que realmente são.
Eu gostei e não gostei dessa última história, mais uma vez me agradou bastante a criatividade do autor, a construção dos personagens e as cenas gráficas que envolviam a chuva e todas as suas consequências. Eu também gostei bastante da crítica ao fanatismo religioso e as pontuais críticas à homofobia, que poderiam ter sido melhor trabalhadas uma vez que a personagem principal é lésbica. Porém, além desse tom de crítica que poderia ser melhor executado, o autor faz uma reviravolta muito louca para entregar um final surpreendente, eu gostei das motivações por trás da chuva, mas toda a construção disso foi demais para a suspensão de realidade que eu consegui empregar à história, mas talvez isso seja apenas um problema do leitor.
“Tempo Estranho” é uma coletânea bem coesa, que poderia se beneficiar de alguma concisão. Repleta de ideias criativas, as histórias são instigantes e prendem o leitor, embora o autor se estenda mais do que o necessário na maioria delas ou constrói a trama em uma ordem estranha trazendo o ápice para a metade da trama e deixando um vácuo não tão interessante do meio para o final. Não é a melhor coisa que eu já li do Joe Hill, mas “Tempo Estranho” tem seus momentos.
Quantos cafés “Tempo Estranho” merece?
Concordo com cada ponto da sua resenha. Joe Hill tem ideias incrivelmente originais mas a execução fica a desejar. Acredito que um bom editor saberia orientá-lo sobre esses pontos a serem melhorados.
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Exatamente, ele é novo né, tem bastante tempo ainda para aprender com esses errinhos. Vamos ver o que o mais recente dele me reserva.
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