“Herdeiras do Mar” é o romance de estreia de Mary Lynn Bracht, autora nascida na Alemanha e criada em uma comunidade de imigrantes sul-coreanos nos Estados Unidos. Em 2002, ao visitar o vilarejo de infância de sua mãe, Bracht conheceu as “mulheres de consolo” e foi desse período terrível da história que tirou sua inspiração para a obra em questão, obra com a qual conquistou o prêmio de melhor romance de estreia da Guilda de Escritores da Grã-Bretanha. O livro foi lançado no Brasil inicialmente pela TAG-Experiências Literárias para os assinantes da TAG Inéditos em março de 2020, com tradução de Julia de Souza, em parceria com a editora Paralela, que lançou uma nova edição em junho.
Eu não sei ao certo quando e com qual obra, mas me descobri apaixonado por dramas históricos, foi assim com “As fúrias invisíveis do coração” e “O Pacifista” de John Boyne, “A Rede de Alice” de Kate Quinn e o famoso “A menina que roubava livros” de Markus Zusak. “Herdeiras do Mar” chega para somar na minha lista de romances históricos indispensáveis.
Em meados de 1943, durante a Segunda Guerra Mundial em meio a ocupação da Coreia do Sul pelos japoneses, as irmãs Hana e Emi viviam na província sul-coreana de Jeju, uma pequena ilha conhecida por seus balneários e vulcões. Pertencente à linhagem semi-matriarcal de mulheres haenyeo, Hana auxiliava a mãe nas tarefas do ofício ancestral, mergulhando nas profundezas do mar para tirar o sustento da família.
Um dia, no entanto, com o objetivo de proteger sua irmã mais nova, Hana acaba sendo capturada por um soldado japonês e transportada para a região da Manchúria, no leste asiático, onde é forçada a se tornar uma “mulher de consolo” em um bordel de beira de estrada: a expressão se refere às vítimas de escravidão sexual, que naquela época, eram estupradas para servir aos desejos dos homens que atuavam em bases militares.
Tendo seu leito familiar roubado, sua inocência e alma corrompidas, Hana tenta lutar com as poucas armas que possui para se livrar da situação a qual lhe foi imposta, a luta é extremamente dura, a realidade que precisa enfrentar todos os dias é absurdamente cruel, apenas o desejo de reencontrar a família faz com que Hana consiga se manter de pé e tentando, por mais que se machuque em suas tentativas.
Apesar de ter protegido sua irmã, Emi não passou incólume, assim como sua mãe e seu pai não passaram, a ocupação japonesa na Coreia do Sul foi cruel, um período absolutamente execrável que suscitou traumas e feridas que os sobreviventes carregam consigo até hoje. Emi presenciou sua comunidade ser destruída, sua família ser destruída e, em pedaços, foi obrigada a casar-se com o inimigo para se manter em segurança.
Intercalando o ponto de vista de Hana situado no ano de 1943 e o ponto de vista de Emi durante o ano de 2011, a autora oferece ao leitor uma visão completa dos traumas que a guerra podem causar, demonstra que uma guerra não acaba quando líderes caem ou resolvem seus problemas de ego com um acordo, as feridas da guerra perduram e não cicatrizam naqueles que tiveram suas vidas transformadas.
A autora reflete bastante sobre a importância da memória, a importância de lembrar e falar sobre os horrores que foram impostos para as pessoas em períodos de guerra, principalmente para as mulheres que são constantemente apagadas da história. Há uma frase no livro, retirada de um discurso de Kim Hak-sun, a primeira a denunciar, em 1991, a escravidão sexual imposta para as “mulheres de consolo” durante a ocupação japonesa na Coreia, que me tocou bastante e que faz um sentido gigante, pois quando não ouvimos sobre, não falamos sobre e não conhecemos essas histórias, elas simplesmente deixam de existir com o tempo, é nesse ponto que reside a importância de livros como “Herdeiras do Mar” e autoras como Mary Lynn Bracht.
“Nós precisamos lembrar das coisas que nos foram impostas.” – Kim Hak-sun
Sempre que decido ler algum romance histórico, me questiono sobre o motivo pelo qual nem todas as batalhas travadas em uma guerra são recordadas e registradas nos livros de história, nos filmes e nos museus, principalmente quando essas batalhas são travadas e protagonizadas por mulheres. Eu me sinto feliz de ter a oportunidade de conhecer histórias como as das “mulheres de consolo” e extremamente triste de constatar que suas histórias e tantas outras histórias envolvendo mulheres são sumariamente deletadas.
É clara a necessidade de que histórias como essas sejam contadas e expostas para que todos saibam que guerras não são travadas só por homens em linhas de frente perdendo suas vidas por ideais que, na maioria das vezes, nem são os seus, é necessário expor as condições desumanas com as quais as mulheres, em tempos de guerra ou não, são tratadas desde sempre, afinal mesmo com a memória, com o alerta, expondo de todas as maneiras diversas mazelas com as quais já fomos expostos, os erros continuam os mesmos ciclicamente, a história é cíclica, mas se continuarmos simplesmente ignorando as histórias dessas mulheres, vendendo a imagem de que o feminino em tempos de guerra são apenas figuras enlutadas esperando pelo retorno de seus maridos, infelizmente estaremos fadados a repetir sempre os mesmos erros.
“Herdeiras do Mar” foi uma leitura que me emocionou muito, me doeu fundo, mas também me trouxe a alegria de saber que as histórias dessas mulheres estão sendo finalmente contadas, suas vidas não serão mais invalidadas, há alguém escrevendo sobre elas, há alguém lendo sobre elas, há alguém falando sobre elas e isso é muito importante. A comunidade e a cultura das mulheres haenyeo é linda demais e mostra mais uma vez, dentre milhões de exemplos, que as mulheres são incríveis, fortes e fascinantes.
Eu gostaria que mais pessoas tivessem a oportunidade de conhecer as histórias dessas mulheres, eu gostaria que todos nós passássemos a seguir a frase de Kim Hak-sun e tentássemos lembrar de todas as coisas que foram impostas à todas as minorias, eu gostaria que as pessoas buscassem conhecer as batalhas que enfrentamos antes de invalidar nossas lutas, é por isso que precisamos lembrar, é por isso que precisamos falar, é por isso que precisamos registrar histórias que não nos são contadas.
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Quantos cafés “Herdeiras do Mar” merece?
A história me deixou com muita vontade de ler. Só preciso melhorar meu psicológico primeiro.
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