TEATRO: A Herança – Parte I

No dia 11 de março fui ao teatro conferir “A Herança”, peça teatral escrita por Matthew López em uma montagem inédita nos palcos brasileiros. A peça é um grande sucesso na Broadway e foi premiada com 4 Tony Awards, incluindo na categoria de Melhor Peça.

Aqui no Brasil, a montagem foi idealizada por Bruno Fagundes, que interpreta o personagem Eric Glass, e Zé Henrique de Paula, que também traduziu e dirige o espetáculo. Como trata-se de um espetáculo de longa duração, são cinco horas e meia, o projeto foi dividido em duas partes e nesse post falarei sobre a primeira delas e, assim que conferir a segunda parte no início de abril, volto para falar sobre a conclusão.

No Brasil, a peça tem início quando Eric Glass (Bruno Fagundes), prestes a ser despejado de seu apartamento, se aproxima de Walter (Marco Antônio Pâmio) e Henry (Reynaldo Gianecchini) na tentativa de se compreender durante a turbulenta ascensão de seu recém noivo, Toby Darling (Rafael Primot), à fama. Porém, quando Adam (André Torquato) surge em suas vidas, três gerações colidem e redefinem suas concepções sobre amor, afeto, perda, saudade e amizade.

Eric Glass (Bruno Fagundes) se enxerga como um homem sem nada de especial, embora seja amoroso, dedicado e dotado de uma empatia ímpar. Ele vive em um apartamento grande e luxuoso, esse apartamento é muito importante por ser um lar e não somente uma residência, todas as paredes, quinas e até os móveis contam um pouco da história de sua família.

O valor do aluguel do apartamento é ridiculamente barato se comparado ao seu tamanho e a realidade imobiliária, mas ele só é barato assim por tratar-se de um valor firmado em um contrato muito antigo em nome da avó de Eric, agora falecida. Com o falecimento da locadora, haverá uma atualização de valores nesse contrato e o valor passará a ser inviável para a sua realidade financeira.

Tendo isso em mente, há outro fato sobre Eric que precisa ser dito. Além de não se ver pelo que é, ele dedica sua vida quase completamente em função de seu relacionamento com seu recém noivo Toby Darling (Rafael Primot), muitas vezes é como se nem existisse um Eric sem um Toby e é por isso e, acima de tudo, por conhecer seu parceiro, que ele decide não deixá-lo ciente do problemão envolvendo a alteração do contrato de aluguel que, de certo, resultará em um despejo em poucos meses.

Toby Darling é um autor de um livro só e está há anos trabalhando no roteiro adaptado desse romance para o teatro. O personagem tem um ego gigante que engole a personalidade amável e contida de seu parceiro Eric, suas relações pessoais e chega até a consumir suas próprias percepções e decisões precipitadas em prol de glória imediata. Seu relacionamento é extremamente cômodo, uma vez que seu parceiro proporciona toda a segurança que ele precisa para seguir sua caminhada rumo à fama idealizada. Fica claro para os mais atentos, logo de início, que Toby ama mais a fama e a si mesmo do que Eric.

A Herança – Foto de Jonatas Marques/Divulgação

Durante o período no qual Toby trabalha em seu roteiro, Eric se vê por muitas vezes na companhia de Walter (Marco Antônio Pâmio), marido de Henry (Reynaldo Gianecchini). Walter é um homem mais velho que constrói uma amizade verdadeira e muito bonita com Eric enquanto passa tardes conversando com ele sobre seu relacionamento longevo com Henry, sua história de vida e coisas que já enfrentou até aqui.

É na figura de Walter que Eric começa a encontrar respostas para várias das questões que nublam sua visão, sejam elas questões relacionadas ao amor, companheirismo, as dificuldades de se manter um relacionamento e as dificuldades de ser um homem homossexual nos tempos atuais, que nem se comparam as dificuldades enfrentadas por Walter em sua juventude em plena explosão da epidemia do vírus HIV.

É nessa trama de conversas entre os dois que o texto nos dá um dos inúmeros possíveis significados para o título da obra. São essas conversas que levam o público e refletir sobre todas as pessoas que lutaram antes, que vieram antes, que sedimentaram um caminho extremamente cruel e sinuoso para que hoje seja possível sentir orgulho, ter menos medo, ter consciência de que não há nada de errado no amor e que, independentemente das inúmeras formas que ele se apresente, o amor sempre será a maior e mais pura característica intrínseca do ser verdadeiramente humano.

Há momentos hilários na peça, mas também há momentos tristes, profundos e reflexivos. Um dos momentos mais dolorosos acontece durante um monólogo de Walter, onde ele conta a história de sua casa de campo e tudo que ela representa por ter se tornado uma espécie de último refúgio em tempos extremamente difíceis e tristes.

Walter não é o único amigo de Eric e são nessas relações de amizade que conhecemos ou vislumbramos, pelo menos nessa primeira parte, diversas vivências diferentes dentro dessa mesma comunidade. Enquanto os personagens de Felipe Hintze e Wallace Mendes formam um casal que busca expandir a família se utilizando de uma barriga de aluguel, o personagem de Haroldo Miklos prefere se aventurar em relações sem compromisso com homens mais jovens. Enquanto Henry (Reynaldo Gianecchini) é um homem consumido pelo trabalho e pelas suas convicções políticas duvidosas, Adam (André Torquato) é um jovem e sonhador estudante de teatro que possui muitas camadas de intensidade, apesar da aparente figura de fragilidade.

Adam é uma figura central no impasse do relacionamento de Eric e Toby, filho adotivo de uma família muito rica, o jovem é praticamente tutorado de certa forma pelo casal que começa a ensiná-lo sobre cinema, até que a relação deles acaba por transformar-se em uma história digna de roteiro de filme dramático. Se você juntar os pontos, já pode imaginar os resultados da convergência de caminhos desses personagens.

Torquato empresta suas emoções, alma e corpo à um personagem extremamente complexo que, como supracitado, aparenta ser frágil e mimado, mas se prova um jovem intelectual cheio de sonhos, sem cair na ingenuidade, sentimentos contidos e batalhas que precisou travar muito cedo em sua vida.

As atuações estão incríveis, eu poderia derramar inúmeros superlativos para falar sobre cada uma delas. É perceptível que a peça tem um significado importante para cada um dos profissionais envolvidos, que há carinho e respeito pelo que está sendo contado/representado durante o espetáculo, pois há plena consciência de que aquilo não ficará apenas no palco ou será esquecido após deixar o teatro, “A Herança” é uma obra que fica, que reverbera e se faz presente.

Um grande exemplo desse empenho, carinho e conhecimento da importância da obra, é o fato de que Rafael Primot fraturou o tornozelo pouco antes da estreia da peça e optou por imobilizar seu tornozelo ao invés de partir para uma cirurgia que lhe custaria continuar no projeto. Primot, mesmo de muletas entrega uma atuação incendiária, caótica e apaixonante, Toby Darling é um personagem fascinante, daqueles que você ama odiar ou odeia cogitar sentir amor ou até, quem sabe, certo reconhecimento. 

Bruno Fagundes como Eric Glass, por muitas vezes, muitas vezes MESMO, transmite tantas coisas com o olhar que sua presença no palco é simplesmente magnética, ele empresta sua alma ao personagem e é emocionante acompanhar a jornada dele durante a história. Assim também acontece com André Torquato, que hipnotiza com a fragilidade tão latente quanto a força de seu personagem e com o incrível Marco Antônio Pâmio que consegue de forma magistral entrelaçar todos essas histórias com seu personagem que é paixão e dor fundidos à flor da pele.

Falando de emoção, tive três momentos de choro durante a peça, uma delas envolvendo Eric e Toby, outra envolvendo Adam e Toby, e a maior delas onde conhecemos o passado de Walter. Nesse momento em específico as lágrimas não puderam ser contidas, escutei ao meu redor vários suspiros, fungadas e diversas pessoas da audiência se rendendo às lágrimas. Eu particularmente vivi de perto a realidade dessa parte da peça com duas pessoas da minha família, uma quando muito criança e outra mais recentemente, e foi especialmente difícil a nível emocional acompanhar aquela parte, confesso que só fechei os olhos e me permiti sentir a dor, às vezes é sobre isso também.

A “Herança” é uma peça com cenários simples e coxia aberta, ela não é sobre cenários espetaculosos e transições, é mais sobre o texto e emoção. Uma peça tão focada em sentimentos, luta, vivências e representatividade precisava mesmo de um elenco a altura que conseguisse transmitir tudo sem se utilizar de artifícios e enfeites de cenário para distrair a atenção do espectador do que é primordial. Se puder, vá ao teatro, depois de um período extremamente obscuro e hostil à cultura no nosso país é essencial prestigiar o teatro nacional.

Particularmente, mal posso esperar pela segunda parte desse espetáculo e fico na torcida para que a temporada se estenda para que mais pessoas tenham a oportunidade de assistir, uma vez que os ingressos dessa primeira temporada já se esgotaram.

Grande abraço e até o próximo café!

Quantos cafés (“A Herança” – Parte 1) merece?

2 comentários sobre “TEATRO: A Herança – Parte I

  1. Jeniffer Geraldine disse:

    Parabéns pela volta, Luke! E em grande estilo falando sobre teatro. Já disse e repito, acho chique. Fico feliz pela volta do seu blog pq vc sempre valorizou a produção cultural brasileira.
    Bjs
    (obs: não suma! rs)

    Curtido por 1 pessoa

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Imagem do Twitter

Você está comentando utilizando sua conta Twitter. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.