TEATRO: A Herança – Parte II

No meu último post aqui no blog contei um pouco sobre a minha experiência com a primeira parte da montagem nacional do espetáculo “A Herança”, adaptação da obra homônima escrita por Matthew López que foi um grande sucesso na Broadway e premiada com 4 Tony Awards, e prometi que retornaria aqui para contar as minhas impressões sobre a conclusão dessa história que se dá na segunda parte do espetáculo que, somadas as duas partes, chega a mais de cinco horas de duração.

Antes de falar sobre essa segunda parte, creio que alguns avisos sejam necessários: você pode conferir as minhas impressões completas sobre a primeira parte no post “A Herança – Parte I”; caso ainda não tenha assistido a primeira parte e queira assistir, não leia esse texto; caso não tenha pretensão de conferir a primeira ou a segunda parte, reveja seus planos e vá comprar seus ingressos pois o espetáculo acaba de estrear em uma temporada extra no Teatro Raul Cortez e, aviso do Luke, os ingressos acabam muito rápido, corre aqui nesse link e garanta o seu.

Divulgação: Instagram @aherancabr

Após os eventos da primeira parte, encontramos os personagens onde a pausa os deixou, Eric Glass (Bruno Fagundes) finalmente chega à casa de Walter (Marco Antônio Pâmio), localizada no interior do estado, mas o tempo dele ali dura bem pouco, pois Henry Wilcox (Reynaldo Gianecchini) faz questão de ir embora pouco depois de chegar.

Essa primeira cena já nos faz lembrar das diferenças entre os dois, enquanto Eric foi ali para conhecer a casa do seu grande amigo e buscar entender o significado grandioso daquele lugar que foi o último lar de tantas vítimas da AIDS, Henry não vê a hora de abandonar aquele lugar e retornar para a sua luxuosa casa no Village. Essa dicotomia entre a sensibilidade latente do Eric e a praticidade fria de Henry é um aceno grande de que aquela relação está fadada a ser extremamente complicada e transformadora para ambos, ou simplesmente ao fracasso.

Durante o espetáculo, somos diversas vezes confrontados com as diferenças entre os dois homens, o maior exemplo disso acontece em uma das reuniões entre amigos que Eric promove, agora com a presença do bilionário conservador Henry em meio a um grupo que está constantemente lutando contra o ideal que ele defende e vivencia.

Aqui, Henry despeja suas convicções que adentram nos ouvidos do espectador como ácido, enquanto Jasper (Haroldo Miklos), amigo e empregador de Eric, ao ver que não é possível argumentar com uma pessoa como Henry, faz o que qualquer ser humano cansado dessa merda faria, um barraco colossal que acaba por estabelecer de vez duas coisas: a diferença entre a realidade de Henry e a de Eric e seus amigos e o estranho comportamento de Eric ao passar pano para o namorado, indo contra tudo aquilo que ele e seus amigos sempre lutaram.

Ao relativizar isso, Eric passa a se anular novamente, assim como fazia em seu relacionamento super conturbado e tóxico com Toby Darling (Rafael Primot). E, ao decidir aceitar o pedido de casamento de Henry, Eric atesta tudo isso, apesar do que sofreu com Toby, ele ainda não encontrou em si aquilo que de especial busca nos outros.

Divulgação: Instagram @aherancabr

Por falar em Toby, a adaptação de seu livro para a Broadway foi um tremendo sucesso e Adam (André Torquato) se consolidou como uma grande estrela do teatro, apesar das constantes tentativas de sabotagem e autossabotagem de Toby.

Tendo seu relacionamento de mão única com Eric acabado e seu rápido romance alicerçado em pura vaidade com Adam ruído também, o autor investe todas as suas fichas no garoto de programa Leo, também vivido pelo excelente André Torquato, e o agarra como um bote salva-vidas, mas ludibriado facilmente pela fama e pelo dinheiro que tão bem alimentam o seu ego estratosférico e sua fome por conseguir sentir algo que o entorpeça de suas dores, Toby acaba se afundando em uma espiral cada vez mais destrutiva abusando muito de drogas e, infelizmente, carregando Leo consigo.

Divulgação: Instagram @aherancabr

Os maravilhosos Rafael Américo e Davi Tápias interpretam as versões jovens de Walter e Henry, é através deles que conhecemos mais o passado de Henry e passamos a entender quais foram as dores que forjaram uma pessoa tão fria e alheia à própria comunidade, as versões jovens também ajudam no caminhar da relação entre Eric e Henry, um caminhar que se mostra revelador e transformador para ambos.

Leo e Adam são as estruturas da ponte que volta a conectar Eric à Toby, após uma série de presepadas que o autor faz para se aproximar de alguma forma do ex e termina só por afastá-lo mais, a reaproximação não é fácil. Leo agora em frangalhos por se aproximar demais da bomba atômica que Toby se transformou, precisa de acolhimento e de sustentação para que ele não desista de sua própria vida, Toby por sua vez não está em uma situação muito diferente, após perder tudo e mais um pouco, ele precisará abrir e mergulhar em lembranças dolorosas que evitou por toda a sua vida.

De volta à casa de Walter, os personagens conhecem Margaret, a única personagem feminina na peça, interpretada pela gigantesca Miriam Mehler. A personagem possui uma história muito marcante ligada àquela casa, a fragilidade que a atriz transmite ao relatar sua história em um monólogo de fazer marmanjo engasgar em lágrimas, e era a peça que estava faltando para abortar  a maior quantidade de lados possíveis desse prisma gigante que é a nossa comunidade. Creio que todas as mães de pessoas que compõem todas as letras dessa comunidade deveriam assistir pelo menos ao relato de Margaret, uma mãe arrependida e inconformada com o quanto o preconceito dos outros, o enraizado e o descaso com a vida humana da sociedade ao virar as costas para as vítimas da AIDS lhe tirou de vida, amor e possibilidades.

Divulgação: Instagram @aherancabr

Em sua primeira parte, a peça dialogava com seu título trazendo discussões acerca de um testamento, a perda de uma herança familiar física e sentimental, uma herança geracional e histórica que se entranha na luta da comunidade contra inimigos em comum (a cruel epidemia da AIDS e a ainda mais cruel falta de humanidade por todos os lados que excluiu e, por consequência, condenou à morte as vítimas do vírus HIV), uma herança inesperada e a negação dessa herança em prol da ganância e do ego, mas acima de tudo, a herança como um legado para as próximas gerações, coisa que o texto da peça por si só demonstra ser.

Agora, temos ainda mais significados para esse título quando o texto decide nos apresentar a herança que recebemos dos nossos pais e o quanto ela pode influenciar em toda a nossa vida, aquelas características ou traumas que serão acolhidos, superados, usados como lição e como arma de luta, ou simplesmente que nos assombrará a vida inteira.

Sem sombra de dúvidas “A Herança” foi a obra mais potente, extensa e profunda que já vi no teatro, do fundo do meu coração e da minha alma agradeço à todos os envolvidos que, com toda a certeza, visto o descaso com a cultura no nosso país durante os últimos anos, lutaram muito para tornar possível que essa obra fosse realizada aqui, levando o significado de herança ao pé da letra, como um bem/patrimônio passado de uma geração para a outra, me sinto honrado com esse presente.

Quantos cafés “A Herança – Parte II” merece?

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