TEATRO: TOM NA FAZENDA

“Tom na fazenda” (Tom à la farme) é uma montagem teatral da obra homônima do dramaturgo canadense Michel Marc Bouchard, que também já foi adaptada para o cinema por Xavier Dolan. Dirigida por Rodrigo Portella e com atuações de Armando Babaioff, Soraya Revenle, Gustavo Rodrigues e Camila Nhary, a adaptação já possui vários prêmios conquistados e chegou a ter uma temporada de sucesso apresentada em Paris.

Após a morte de seu namorado, o publicitário Tom (Armando Babaioff) vai à fazenda da família de seu amado para o funeral. Recebido com surpresa por Agatha (Soraya Ravenle), mãe religiosa do falecido que nunca ouviu falar do rapaz, Tom se apresenta como um amigo do trabalho e prontamente é recebido pela mulher, que não demora a lhe pedir que diga algumas palavras na cerimônia para mostrar o quanto seu filho era querido, assim como não tarda a questioná-lo sobre a ausência de Sara (Camila Nhary), a namorada de fachada do filho.

Foto de Victor Pollack/Divulgação

Em meio ao luto, Tom tenta se agarrar aos detalhes daquele lugar para amenizar a dor e sentir a presença do amado de alguma forma. Uma outra maneira que ele encontra de manter esse vínculo, inevitavelmente quebrado com um de seus elos destruído em um acidente, acontece por meio de envio de áudios em um aplicativo de troca de mensagens, Tom envia áudios para o amado como se ele fosse escutar após terminar um longo banho que já está se estendendo por muito mais tempo do que deveria.

Agatha, feliz com a presença de um amigo do filho falecido, passa a tratar Tom com o cuidado típico de uma mãe, ela lhe oferece o quarto do filho para dormir, lhe conta histórias sobre a infância e sempre o relembra do discurso que ela espera que ele faça na ausência da namorada ingrata que sequer lhe deu um telefonema para lhe desejar força em um momento tão difícil e não natural como enterrar um filho.

Porém, a receptividade agradável encontrada em Agatha não é um traço de seu outro filho. Tom encontra em Francis apenas agressividade, apesar de ter praticamente o mesmo rosto do amado, não poderia ser mais diferente em todo o resto. Dotado de uma personalidade forte, agressiva, bruta e um tanto quanto bronco, o primeiro contato com Francis é no meio da madrugada, sendo sufocado e tendo de prometer ir embora após a cerimônia sem nunca revelar a verdade sobre o irmão para Agatha e sustentar ao máximo a suposta relação mentirosa com Sara (Camila Nhary).

“Francis deixa suas impressões digitais sujas em todos os lugares”

Acontece que, após a cerimônia, algo em Tom lhe impede de partir e passa a conviver com Agatha e Francis em seus afazeres na fazenda. Nesse ponto, o espectador se questiona sobre o motivo pelo qual ele decide ficar.

Seria ficar ali uma forma de fugir das lembranças dolorosas que vão se reacender na cidade, quando Tom passar por cada lugar que já visitou com o amado? Seria ficar ali uma forma de distrair a cabeça, uma fuga da dor? Ou talvez seria ficar ali, sofrendo constantes ataques físicos e psicológicos, por parte de Francis, uma forma de sentir uma dor maior que obscureça a dor atual?

Conforme a estranha relação de agressividade, luto, tensão física e sexual entre Tom e Francis vai crescendo, vamos acompanhando a transformação do personagem. Quanto mais tempo Tom passa naquela fazenda na companhia de Francis, mais cheio de lama ele fica, no sentido metafórico e no sentido literal.

Na cidade, ele vivia em um mundo um tanto quanto artificial, o contato dele com a realidade da fazenda, a brutalidade de uma perda repentina e a brutalidade de Francis, fazem com que Tom, nesse contato com uma realidade mais bruta, encare esse novo lugar como um universo real de verdade. Isso se intensifica quando ele tem contato com a vida, um êxtase repentino que ele se agarra, tentando ninar e proteger a vida para que ela não possa ir embora mais uma vez.

Tom na Fazenda é um espetáculo com muita fisicalidade, os embates entre Tom e Francis são viscerais, arrepiam e dão frio na barriga e, ouso dizer, até certa dor física em certo momento. Em uma dessas cenas de embate, por conta da fantástica trilha sonora, é possível sentir o que acontece ali no palco, o telespectador quase que leva uma cabeçada do imprevisível Francis em dado momento.

Foto: reprodução facebook.com/tomnafazenda

Toda essa tensão tem um contraponto cômico muito interessante e bem-vindo com a chegada de Sara, a suposta namorada que ama macarrão, fuma muito e não fala uma palavra em português. Ela chega para tentar quebrar um pouco o clima tenso, mas logo acaba se tornando mais um fio nessa teia de mentiras com consequências inevitavelmente marcantes.

Tom na Fazenda é uma história repleta de questionamentos, refletimos aqui sobre o quanto a homofobia transforma as relações familiares, que muitas vezes acaba se sustentando sob um alicerce movediço de mentiras postas uma em cima da outra, camada sob camada. Francis tenta proteger o que sobrou de sua família mantendo o segredo do irmão oculto, mas quando conhecemos o segredo de Francis, percebemos o quão destroçada é essa relação.

Construir uma relação familiar alicerçada na religião esquecendo o principal elemento pregado pelo evangelho, o amor, é o mesmo que tentar construir uma casa unindo os tijolos com uma mistura de concreto sem água, uma estrutura unida por pedras e pó, sem algo que realmente conecte as partes.

Falando um pouco sobre luto, há duas passagens nesse espetáculo que me arrancaram lágrimas por identificação. Uma delas é aquele sensação merda de ver a pessoa que se foi em objetos e até mesmo em rostos desconhecidos na rua, só quem já viveu isso sabe o quão doloroso é. Outra e, a que mais ficou comigo depois de ver o espetáculo, foi uma passagem onde Agatha está no funeral do filho, em pé na frente de um microfone e no mais completo silêncio, foi uma boa exemplificação do que é o luto.

Grande parte do brilho dessa história é a ausência de respostas fáceis, pois o comportamento humano também é assim, ausente de respostas fáceis, e como bem disse Babaioff em uma troca rápida de mensagens no Instagram sobre a apresentação que assisti: “O Teatro é o museu da humanidade”.

“Tom na Fazenda” está em cartaz no Teatro Vivo até o dia 23 de Julho, com sessões às sextas e sábados (20hrs) e domingos (18hrs), classificação indicativa de 18 anos. Os ingressos para a temporada extra podem ser adquiridos nesse link. Para mais informações acesse a página oficial do espetáculo no Instagram.

Quantos cafés “Tom na fazenda” merece?

2 comentários sobre “TEATRO: TOM NA FAZENDA

Deixe um comentário

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.